As perdas
gestacionais são mais comuns do que se
imagina. Estima-se que até 26% de todas as
gestações terminem em aborto espontâneo,
incluindo até 15% das gestações clinicamente
reconhecidas (Slane, 2021; Magnus et al.,
2019). Biologicamente, o termo “aborto
espontâneo” refere-se à perda de uma
gravidez antes das 20 semanas de gestação (Hiefner
et al., 2021), e suas causas são diversas,
muitas vezes relacionadas à saúde materna.
As
anormalidades cromossômicas são as
principais causas de abortos espontâneos.
Essas alterações podem ser numéricas, como a
trissomia do cromossomo 21, ou estruturais,
como deleções, duplicações e translocações.
Mutações genéticas também podem comprometer
o desenvolvimento embrionário, levando à
perda gestacional. Além disso, polimorfismos
em genes relacionados à coagulação sanguínea
podem aumentar o risco de aborto. A
ocorrência de perdas gestacionais
recorrentes em familiares pode indicar
predisposição genética (Oliveira et al.,
2020; Guerra et al., 2024).
Entre os
fatores não genéticos, destaca-se a idade
materna. Mulheres com mais de 35 anos
apresentam maior risco de aborto espontâneo,
devido à redução na qualidade dos óvulos e a
desequilíbrios hormonais, como a deficiência
de progesterona, que afetam a implantação e
o desenvolvimento embrionário (Oliveira et
al., 2020; Guerra et al., 2024).
Outros fatores
relevantes incluem infecções (toxoplasmose,
rubéola, sífilis), doenças autoimunes (lúpus,
síndrome antifosfolipídica), malformações
uterinas (como útero septado), exposição a
substâncias tóxicas (tabaco, álcool),
estresse, má nutrição e distúrbios de
coagulação, como trombofilias, que podem
comprometer o fluxo sanguíneo para o embrião
(Oliveira et al., 2020; Guerra et al.,
2024).
É importante
destacar que, em muitos casos, a causa do
aborto espontâneo permanece desconhecida. No
entanto, a maioria das mulheres que passam
por essa experiência consegue ter gestações
saudáveis posteriormente. Exames como
cariótipo, testes hormonais e de coagulação
podem auxiliar na investigação de perdas
gestacionais recorrentes (Oliveira et al.,
2020; Guerra et al., 2024).
A perda
gestacional pode acarretar diversas
consequências fisiológicas, que variam em
intensidade e duração. A queda abrupta dos
hormônios progesterona e estrogênio pode
causar sangramento vaginal, dores,
alterações de humor, fadiga, sensibilidade
mamária e desequilíbrios hormonais (Guerra
et al., 2024).
O sistema
reprodutor feminino é diretamente afetado,
com cólicas intensas e risco de infecções
uterinas, exigindo atenção médica. A
cicatrização dos tecidos pode levar semanas,
e alterações no colo do útero, como maior
sensibilidade e dilatação, também são
comuns. Procedimentos como Aspiração Manual
Intrauterina (AMIU) e curetagem podem causar
dor adicional (Sajadi-Ernazarova & Martinez,
2023; Guerra et al., 2024).
Além disso, o
sistema imunológico pode ficar comprometido,
aumentando a suscetibilidade a infecções.
Alterações no sistema nervoso, como
estresse, ansiedade, insônia e
irritabilidade, são frequentes. Já no
sistema cardiovascular, podem ocorrer
variações na pressão arterial e na
frequência cardíaca (Guerra et al., 2024).
A morte de uma
criança é considerada uma das perdas mais
severas que um ser humano pode vivenciar —
incluindo a perda gestacional, muitas vezes
invisibilizada, mas associada a altos níveis
de sofrimento. Não surpreende, portanto, que
o aborto espontâneo represente um fator de
risco significativo para o desenvolvimento
de transtornos psicológicos na vida das
famílias afetadas. Esse tema, ainda cercado
por tabus, contribui para a falta de
compreensão social sobre a legitimidade de
um luto prolongado, dificultando que os pais
busquem ajuda por medo de estigmatização (Mergl
et al., 2022).
A perda
gestacional afeta não apenas as mulheres,
mas ambos os parceiros. Estudos mostram que
o aborto espontâneo pode desencadear
tristeza intensa, desespero, dificuldades de
enfrentamento e aumento da prevalência de
depressão, ansiedade e estresse
pós-traumático (Hiefner et al., 2021).
O trauma e o
luto podem gerar desfechos psicológicos
graves, como depressão e até suicídio (Quenby
et al., 2021). Durante o aborto espontâneo,
é essencial considerar o impacto das
repercussões emocionais na percepção da dor,
que envolve dimensões sensoriais e
afetivo-motivacionais. Estudos indicam que
os aspectos afetivos da dor são mais
intensamente ativados em contextos de
sofrimento emocional (Stankewitz et al.,
2023; Frumkin et al., 2021).
Um conceito
relevante nesse contexto é a catastrofização
da dor — a tendência de ruminar, amplificar
ou sentir-se impotente diante da dor. Essa
resposta está associada a estados emocionais
como ansiedade, medo, raiva e sintomas de
estresse pós-traumático (Wideman et al.,
2009; Glette et al., 2021). No período
perinatal, a catastrofização da dor tem sido
relacionada a piores desfechos psicológicos
maternos, como depressão pós-parto e
dificuldades de ajustamento social (Carmo et
al., 2024).
A perda
gestacional também pode impactar
significativamente a vida profissional e
sexual da mulher. No ambiente de trabalho,
são comuns dificuldades de concentração,
queda de produtividade e necessidade de
afastamento. No âmbito sexual, o luto, a dor
física, a ansiedade e o medo de novas perdas
podem reduzir o desejo e dificultar a
intimidade com o parceiro. Alterações
hormonais e físicas também influenciam a
libido e a resposta sexual (Azin et al.,
2020).
Cada mulher
vivencia a perda gestacional de forma única,
e o tempo de recuperação varia. O apoio de
familiares, amigos, grupos de apoio e
profissionais de saúde — incluindo
psicólogos — é essencial para promover o
bem-estar físico e emocional. O suporte
adequado pode prevenir ou tratar sintomas
como tristeza profunda, desesperança e
ansiedade excessiva (Guerra et al., 2024).
O manejo
eficaz da dor é parte fundamental da
assistência humanizada. Em abortos ocorridos
antes das 14 semanas, uma revisão
sistemática apontou que o ibuprofeno pode
ser mais eficaz que o paracetamol na redução
da dor (Reynolds-Wright et al., 2022). Em
procedimentos como a Aspiração Manual
Intrauterina (AMIU), analgésicos e bloqueio
paracervical são recomendados (Moraes Filho,
2018).
Além das
abordagens farmacológicas, terapias não
medicamentosas têm sido exploradas. Estudos
recentes avaliaram o uso da auriculoterapia
e da realidade virtual para controle da dor
e da ansiedade durante o AMIU, mas os
resultados ainda não demonstraram eficácia
significativa (Oviedo et al., 2021;
McDougall et al., 2024), indicando a
necessidade de mais pesquisas.
No Brasil, um
estudo qualitativo revelou que mulheres e
familiares que vivenciam a perda gestacional
frequentemente relatam sentimento de
impotência, solidão e abandono. A percepção
do cuidado recebido inclui críticas à
comunicação, à atenção à saúde mental e à
falta de empatia dos profissionais. Também
foram relatadas práticas violadoras de
direitos, como a ausência de analgesia (Vescovi
& Levandowski, 2023).
Diante disso,
o Ministério da Saúde propõe, desde 2011, um
modelo humanizado de atenção às mulheres em
situação de abortamento (Brasil, 2011). A
norma técnica prevê acolhimento, escuta
qualificada, alívio da dor, atenção clínica
adequada e integração com serviços de saúde
mental, com o objetivo de oferecer um
ambiente seguro e respeitoso para a
recuperação física e emocional da mulher.
Referências:
-
Azin, SA,
Golbabaei, F., Warmelink, JC et al.
Associação de depressão com função
sexual em mulheres com histórico de
perda gestacional recorrente: estudo
descritivo-correlacional em Teerã, Irã.
Fertil Res and Pract 6 , 21 (2020).
https://doi.org/10.1186/s40738-020-00089-w
-
Brasil.
Ministério da Saúde. Secretaria de
Atenção à saúde. Departamento de Ações
Programáticas Estratégicas. Atenção
humanizada ao abortamento: Norma
técnica. Ministério da Saúde. 2 ed. -
Brasília. 2011.
-
Carmo ACN,
Machado PM, Funez MI. Catastrophizing
pain in the perinatal period in
postnatal maternal psychological
outcomes: scoping review. BrJP
[Internet] 2024;7:e20240045.
-
Frumkin MR,
Robinaugh DJ, LeBlanc NJ, et al. The
pain of grief: Exploring the concept of
psychological pain and its relation to
complicated grief, depression, and risk
for suicide in bereaved adults. J Clin
Psychol. 2021;77(1):254-267. doi:10.1002/jclp.23024
-
Glette M,
Stiles TC, Jensen MP, Nilsen TIL,
Borchgrevink PC, Landmark T. Impact of
pain and catastrophizing on the
long-term course of depression in the
general population: the HUNT pain study.
Pain. 2021;162(6):1650-1658. doi:10.1097/j.pain.0000000000002168
-
Guerra.
Denise Krishna Holanda, Ana Elisa
Rodrigues Germiniani, Ana Luiza
Bernardes Henriques Amaral, Beatriz
Maria Mesquita de Mello e Silva, Emily
Moraes Schild Brauner, Flavia Victória
Rodrigues Gonçalves, et al. ABORTO
ESPONTÂNEO: DIRETRIZES PARA UM
DIAGNÓSTICO EFICAZ. cpaqv [Internet].
21º de maio de 2024 [citado 16º de
novembro de 2024];16(2). Disponível em:
https://revista.cpaqv.org/index.php/CPAQV/article/view/1789
-
Hiefner
AR, Villareal A. A Multidisciplinary,
Family-Oriented Approach to Caring for
Parents After Miscarriage: The
Integrated Behavioral Health Model of
Care. Front Public Health.
2021;9:725762. Published 2021 Nov 30.
doi:10.3389/fpubh.2021.725762
-
Magnus MC,
Wilcox AJ, Morken NH, Weinberg CR,
Håberg SE. Papel da idade materna e do
histórico de gravidez no risco de aborto
espontâneo: estudo prospectivo baseado
em registro. BMJ. (2019) 364:l869. doi:
10.1136/bmj.l869
-
McDougall
AA, Bard E, Jesner O, Ibrahim S, Rouabhi
S, Deo N. Virtual reality for the
management of pain and anxiety during
outpatient manual vacuum aspiration for
miscarriage or incomplete abortion: a
mixed methods trial. Eur J Contracept
Reprod Health Care. 2024;29(6):298-304.
doi:10.1080/13625187.2024.2410838
-
Mergl R,
Quaatz SM, Edeler LM, Allgaier AK. Grief
in women with previous miscarriage or
stillbirth: a systematic review of
cross-sectional and longitudinal
prospective studies. Eur J
Psychotraumatol. 2022;13(2):2108578.
Published 2022 Aug 18. doi:10.1080/20008066.2022.2108578
-
Moras
Filho OB. Aborto: classificação,
diagnóstico e conduta. São Paulo:
Federação Brasileira das Associações de
Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO);
2018. (Protocolo FEBRASGO - Obstetrícia,
nº 21/ Comissão Nacional Especializada
em Assistência Pré-Natal).
-
Oviedo JD,
Marquez E, Gold MA, Westhoff CL.
Auricular acupressure and auricular
acupuncture as an adjunct for pain
management during first trimester
aspiration abortion: A randomized,
double-blinded, three-arm trial.
Contraception. 2021;103(5):342-347. doi:10.1016/j.contraception.2021.02.005
-
Oliveira
MTS, Oliveira CNT, Marques LM, Souza CL,
Oliveira MV. Factors associated with
spontaneous abortion: a systematic
review. Rev Bras Saude Mater Infant
[Internet].2020Apr;20(2):361–72.Availablefrom:https://doi.org/10.1590/1806-93042020000200003
-
Quenby S,
Gallos ID, Dhillon-Smith RK, et al.
Miscarriage matters: the epidemiological,
physical, psychological, and economic
costs of early pregnancy loss. Lancet.
2021;397(10285):1658-1667. doi:10.1016/S0140-6736(21)00682-6
-
Reynolds-Wright JJ, Woldetsadik MA,
Morroni C, Cameron ST. Pain management
for medical abortion before 14 weeks'
gestation: A systematic review.
Contraception. 2022;116:4-13. doi:10.1016/j.contraception.2022.08.005
-
Sajadi-Ernazarova KR, Martinez CL.
Abortion Complications. [Updated 2023
May 16]. In: StatPearls [Internet].
Treasure Island (FL): StatPearls
Publishing; 2025 Jan-. Available from:
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK430793/
-
Slane VH.
Aborto espontâneo. National Library of
Medicine StatPearls (2021). Disponível
online em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK532992
-
Stankewitz
A, Mayr A, Irving S, Witkovsky V, Schulz
E. Pain and the emotional brain:
pain-related cortical processes are
better reflected by affective evaluation
than by cognitive evaluation. Sci Rep.
2023;13(1):8273. Published 2023 May 22.
doi:10.1038/s41598-023-35294-2
-
Vescovi G,
Levandowski DC. Percepção Sobre o
Cuidado à Perda Gestacional: Estudo
Qualitativo com Casais Brasileiros.
Psicol cienc prof [Internet].
2023;43:e252071. Available from: https://doi.org/10.1590/1982-3703003252071
-
Wideman TH,
Adams H, Sullivan MJ. A prospective
sequential analysis of the
fear-avoidance model of pain. Pain.
2009;145(1-2):45-51. doi:10.1016/j.pain.2009.04.022
* Alunos de
mestrado e doutorado - UnB - disciplina da
Pós-Graduação e UFBA