DOL - Dor On Line

Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - USP

Universidade de Brasília - Campus de Ceilândia
Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto - USP
Faculdade de Farmácia - Universidade Federal da Bahia

Principal    |    Editoriais    |    Edições    |    Sobre a Dor    |    Glossário    |    Projeto DOL    |    Publicações    |    Contato

   
 

Editorial do mês

 

 

Vale tudo pela beleza? Os riscos e benefícios da “harmonização facial definitiva”
Andrey Hudson Interaminense Mendes de Araújo* e Renata de Oliveira Gomes **

 

A busca por uma saúde completa, que contemple todas as dimensões definidas pela Organização Mundial de Saúde, parece ser a “corrida da plenitude” do Século 21. Partindo da premissa de que somos seres biopsicosocioculturais e que saúde é “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de afecções e enfermidades”, a procura pela cirurgia plástica como um caminho para se obter este estado vem aumentando nos últimos anos. Dados da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (International Society of Aesthetic Plastic Surgery, ISAPS, em inglês), de 2021, apontam que o Brasil é o vice-líder mundial em procedimentos cirúrgicos estéticos, detendo 13% do total de procedimentos, ficando atrás, apenas, dos Estados Unidos da América, que detém um total de 15%.

 

Para exemplificar, em 2021, em dados nacionais, foram registradas mais de 1,6 milhão de intervenções cirúrgicas estéticas. No Brasil, há mais de 6 mil cirurgiões plásticos, tendo maior concentração na região sudeste do país. Ainda que seja considerada muito segura, a cirurgia plástica eletiva, ou seja, aquela que não é considerada de urgência, apresenta taxa de mortalidade de cerca de 1 em 50 mil pacientes. E onde que entra a “harmonização facial definitiva” nesta história?

 

Neste mar de conceitos e definições, é fácil se perder. A expressão “harmonização facial definitiva” é utilizada para se referir à cirurgia ortognática com fins exclusivamente estéticos. Por sua vez, a cirurgia ortognática é um procedimento cirúrgico que envolve a correção de deformidades faciais e maxilofaciais, que tragam prejuízos funcionais e/ou estéticos, como mastigação unilateral e “queixo duplo”, respectivamente. É importante destacar que, além dos benefícios funcionais, a cirurgia ortognática pode trazer uma melhoria objetiva em relação a traços de personalidade e emoções percebidas. Um estudo publicado em 2017 avaliou 20 pacientes que realizaram a cirurgia ortognática e constatou melhorias em 12 aspectos relacionados à fisionomia, sendo: sentiam-se mais dominantes, confiáveis, amigáveis, inteligentes, atraentes e felizes; bem como, sentiam-se menos ameaçadores, surpresos, tristes, com medo e desgostosos.

 

No entanto, como em qualquer procedimento cirúrgico invasivo, a cirurgia ortognática não está isenta de riscos. Dentre estes, estão as complicações intraoperatórias, como hemorragias e fraturas de segmentos ósseos, e complicações pós-operatórias, como reincidência de problemas, disfunção temporomandibular e dor associada a lesão de nervos (neuralgia). Neste último, destacamos as lesões ao Nervo Trigêmeo, o 5º par de nervo craniano (CN V), responsável pelas sensações da face e da função dos músculos mastigatórios. Sua nomenclatura corresponde aos três ramos principais: o ramo oftálmico (V1), que controla a sensação na testa, no couro cabeludo, nas pálpebras superiores e no nariz; o ramo maxilar (V2), que controla a sensação na região das maçãs do rosto, do nariz, do lábio superior, do céu da boca e dos dentes superiores; e, por fim, o ramo mandibular (V3), que controla a sensação na mandíbula, no queixo, nos dentes inferiores e, também, é responsável pelos músculos da mastigação.

 

Como essa cirurgia plástica envolve diferentes regiões da face, o risco de lesão mecânica no nervo trigêmeo é aumentado, o que, nesta ocasião, pode causar a neuralgia do trigêmeo pós-traumático. Um estudo retrospectivo realizado em 2022, na Bélgica, com 384 pacientes, identificou que 60% apresentaram dor crônica após lesão cirúrgica do nervo trigêmeo. A dor neste nervo interfere em diversas atividades do cotidiano, como alimentação, fala, sono, aplicação de maquiagem, barbear, beijo e escovação dos dentes, ou seja, praticamente todas as atividades de vida diárias que consideramos “naturais”. Neste sentido, é evidente que ela pode trazer consequências negativas à saúde mental e à qualidade de vida dos indivíduos acometidos.

 

Consequentemente, estudos indicam que aproximadamente 36% dos pacientes que convivem com a dor crônica pós-traumática no nervo trigêmeo apresentam níveis elevados de depressão e ansiedade. Além disso, a catastrofização da dor é frequente e traz impactos substanciais ao seu enfrentamento. Portanto, semelhante a outras condições de dor crônica, a dor após lesão cirúrgica do nervo trigêmeo tem sido associada a uma carga psicossocial considerável, podendo trazer impactos à saúde pública.

 

O tratamento para neuralgia do trigêmeo pós-traumático é desafiador e engloba estratégias farmacológicas e não-farmacológicas, além de intervenções cirúrgicas. A terapia farmacológica de primeira linha envolve o uso de anticonvulsivantes, como a carbamazepina e seus derivados, seguidos de outros medicamentos, como a fenitoína, gabapentina e pregabalina. Com o uso desses medicamentos, é necessário o acompanhamento clínico de possíveis efeitos adversos. Ademais, é importante ressaltar que, o tratamento farmacológico geralmente não surte efeito imediato e, em algumas ocasiões, não é o suficiente para a redução da dor.

 

Dessa forma, outras abordagens terapêuticas podem ser utilizadas, incluindo pequenos procedimentos invasivos, como o bloqueio do nervo com a injeção local de toxina botulínica. Essa estratégia pode proporcionar alívio temporário da dor; em algumas situações múltiplas injeções são necessárias para alcançar o alívio desejado, visto que a magnitude e duração do efeito podem ser diferentes entre as pessoas.

 

Decide-se pelos procedimentos cirúrgicos quando estas estratégias terapêuticas supracitadas não conseguem alcançar o resultado esperado. Em relação ao tratamento cirúrgico, há alguns pontos que precisam ser levados em consideração, como estado de saúde geral, idade, nível de dor e disponibilidade para o procedimento. O tratamento cirúrgico é delicado e preciso, especialmente quando a área afetada é pequena. Para a neuralgia do trigêmeo pós-traumática, em geral, dois procedimentos cirúrgicos podem ser indicados: a rizotomia, que consiste no bloqueio temporário ou definitivo de um ou mais ramos do nervo, apresentando alívio da dor em aproximadamente 80% dos pacientes; e a radiocirurgia estereotáxica, onde é administrado um feixe de radiação concentrado e preciso no ramo afetado, apresentando alívio em aproximadamente 70% dos pacientes em algumas semanas.

 

É evidente que a “harmonização facial definitiva”, assim como outras cirurgias plásticas, podem trazer benefícios que perpassam as características meramente físicas, mas também associadas a uma melhora da autoestima e bem-estar. Porém, é importante ponderar os riscos envolvidos neste procedimento invasivo, uma vez que lesões ao nervo trigêmeo podem causar dor crônica importante, de difícil controle, com impactos negativos em diversas áreas da vida cotidiana e que, em muitos casos, o tratamento não é tão acessível. Por fim, é importante buscar profissionais capacitados e competentes, que contrabalançam os riscos e benefícios deste procedimento estético, e lembrar que não vale tudo em nome da beleza – ainda quando se trata de um “padrão estético estabelecido”.

 

Caso você queira ler um pouco mais sobre a busca pelo “corpo perfeito” e as dores que podem decorrer desses procedimentos, acesse o Editorial DOL nº 264 – “A dor do corpo perfeito”, clicando AQUI. Para ler sobre novas possibilidades de tratamento da dor neuropática usando células-tronco, acesse o Editorial DOL nº 279 – “Tratamentos com células-tronco e seus derivados podem levar à cura da dor neuropática?”, clicando AQUI.

 

Referências:

1. Van der Cruyssen F, Peeters F, De Laat A, Jacobs R, Politis C, Renton T. Prognostic factors, symptom evolution, and quality of life of posttraumatic trigeminal neuropathy. Pain. 2022 Apr 1;163(4): e557-e571. doi:10.1097/j.pain.0000000000 002408.

2. Melek LN, Smith JG, Karamat A, Renton T. Comparison of the Neuropathic Pain Symptoms and Psychosocial Impacts of Trigeminal Neuralgia and Painful Posttraumatic Trigeminal Neuropathy. J Oral Facial Pain Headache. 2019 Winter;33(1):77-88. doi: 10.11607/ofph.2157.

3. Smith JG, Elias LA, Yilmaz Z, Barker S, Shah K, Shah S, Renton T. The psychosocial and affective burden of posttraumatic neuropathy following injuries to the trigeminal nerve. J Orofac Pain. 2013 Fall;27(4):293-303. doi: 10.11607/jop.1056.

4. Korczeniewska OA, Kohli D, Benoliel R, Baddireddy SM, Eliav E. Pathophysiology of Post-Traumatic Trigeminal Neuropathic Pain. Biomolecules. 2022 Nov 25;12(12):1753. doi: 10.3390/biom12121753.

5. Xu R, Xie ME, Jackson CM. Trigeminal Neuralgia: Current Approaches and Emerging Interventions. J Pain Res. 2021 Nov 3;14: 3437-3463. doi: 10.2147/JPR.S331036.

6. Neal TW, Zuniga JR. Post-traumatic Trigeminal Neuropathic Pain: Factors Affecting Surgical Treatment Outcomes. Front Oral Health. 2022 Jul 7;3: 904785. doi: 10.33 89 /froh.2022.904785.

7. Johns Hopkins Medicine. Trigeminal Neuralgia. Johns Hopkins Medicine website. https://www.hopkinsmedicine.org/health/conditions-and-diseases/trigeminal-neuralgia. Access: November 03, 2023.

8. Mazzaferro, Daniel M. M.B.A.; Wes, Ari M. B.A.; Naran, Sanjay M.D.; Pearl, Rebecca Ph.D.; Bartlett, Scott P. M.D.; Taylor, Jesse A. M.D. Orthognathic Surgery Has a Significant Effect on Perceived Personality Traits and Emotional Expressions. Plastic and Reconstructive Surgery. 2017 Nov. 140, 5: 971-981. DOI:10.1097/PRS.0000000 000003760

9. SBCP. Demografia de cirurgia plástica: número de cirurgiões plásticos e perfil geoeconômico por município. Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica. 2020;52 p

10. Borsoi BFG. A distribuição espacial de cirurgias plásticas no Brasil e a mercantilização do corpo. In: VXIII Encontro Nacional de Geógrafos; 2016; São Luis, MA. Cidade/Urbano, 2016.


* Aluno de doutorado - UnB - disciplina da Pós-Graduação

** Aluna de doutorado - UFBA