A busca por
uma saúde completa, que contemple todas as
dimensões definidas pela Organização Mundial
de Saúde, parece ser a “corrida da
plenitude” do Século 21. Partindo da
premissa de que somos seres
biopsicosocioculturais e que saúde é “um
estado de completo bem-estar físico, mental
e social e não apenas a ausência de afecções
e enfermidades”, a procura pela cirurgia
plástica como um caminho para se obter este
estado vem aumentando nos últimos anos.
Dados da Sociedade Internacional de Cirurgia
Plástica Estética (International Society of
Aesthetic Plastic Surgery, ISAPS, em
inglês), de 2021, apontam que o Brasil é o
vice-líder mundial em procedimentos
cirúrgicos estéticos, detendo 13% do total
de procedimentos, ficando atrás, apenas, dos
Estados Unidos da América, que detém um
total de 15%.
Para
exemplificar, em 2021, em dados nacionais,
foram registradas mais de 1,6 milhão de
intervenções cirúrgicas estéticas. No
Brasil, há mais de 6 mil cirurgiões
plásticos, tendo maior concentração na
região sudeste do país. Ainda que seja
considerada muito segura, a cirurgia
plástica eletiva, ou seja, aquela que não é
considerada de urgência, apresenta taxa de
mortalidade de cerca de 1 em 50 mil
pacientes. E onde que entra a “harmonização
facial definitiva” nesta história?
Neste mar de
conceitos e definições, é fácil se perder. A
expressão “harmonização facial definitiva” é
utilizada para se referir à cirurgia
ortognática com fins exclusivamente
estéticos. Por sua vez, a cirurgia
ortognática é um procedimento cirúrgico que
envolve a correção de deformidades faciais e
maxilofaciais, que tragam prejuízos
funcionais e/ou estéticos, como mastigação
unilateral e “queixo duplo”,
respectivamente. É importante destacar que,
além dos benefícios funcionais, a cirurgia
ortognática pode trazer uma melhoria
objetiva em relação a traços de
personalidade e emoções percebidas. Um
estudo publicado em 2017 avaliou 20
pacientes que realizaram a cirurgia
ortognática e constatou melhorias em 12
aspectos relacionados à fisionomia, sendo:
sentiam-se mais dominantes, confiáveis,
amigáveis, inteligentes, atraentes e
felizes; bem como, sentiam-se menos
ameaçadores, surpresos, tristes, com medo e
desgostosos.
No entanto,
como em qualquer procedimento cirúrgico
invasivo, a cirurgia ortognática não está
isenta de riscos. Dentre estes, estão as
complicações intraoperatórias, como
hemorragias e fraturas de segmentos ósseos,
e complicações pós-operatórias, como
reincidência de problemas, disfunção
temporomandibular e dor associada a lesão de
nervos (neuralgia). Neste último, destacamos
as lesões ao Nervo Trigêmeo, o 5º par de
nervo craniano (CN V), responsável pelas
sensações da face e da função dos músculos
mastigatórios. Sua nomenclatura corresponde
aos três ramos principais: o ramo oftálmico
(V1), que controla a sensação na testa, no
couro cabeludo, nas pálpebras superiores e
no nariz; o ramo maxilar (V2), que controla
a sensação na região das maçãs do rosto, do
nariz, do lábio superior, do céu da boca e
dos dentes superiores; e, por fim, o ramo
mandibular (V3), que controla a sensação na
mandíbula, no queixo, nos dentes inferiores
e, também, é responsável pelos músculos da
mastigação.
Como essa
cirurgia plástica envolve diferentes regiões
da face, o risco de lesão mecânica no nervo
trigêmeo é aumentado, o que, nesta ocasião,
pode causar a neuralgia do trigêmeo
pós-traumático. Um estudo retrospectivo
realizado em 2022, na Bélgica, com 384
pacientes, identificou que 60% apresentaram
dor crônica após lesão cirúrgica do nervo
trigêmeo. A dor neste nervo interfere em
diversas atividades do cotidiano, como
alimentação, fala, sono, aplicação de
maquiagem, barbear, beijo e escovação dos
dentes, ou seja, praticamente todas as
atividades de vida diárias que consideramos
“naturais”. Neste sentido, é evidente que
ela pode trazer consequências negativas à
saúde mental e à qualidade de vida dos
indivíduos acometidos.
Consequentemente, estudos indicam que
aproximadamente 36% dos pacientes que
convivem com a dor crônica pós-traumática no
nervo trigêmeo apresentam níveis elevados de
depressão e ansiedade. Além disso, a
catastrofização da dor é frequente e traz
impactos substanciais ao seu enfrentamento.
Portanto, semelhante a outras condições de
dor crônica, a dor após lesão cirúrgica do
nervo trigêmeo tem sido associada a uma
carga psicossocial considerável, podendo
trazer impactos à saúde pública.
O tratamento
para neuralgia do trigêmeo pós-traumático é
desafiador e engloba estratégias
farmacológicas e não-farmacológicas, além de
intervenções cirúrgicas. A terapia
farmacológica de primeira linha envolve o
uso de anticonvulsivantes, como a
carbamazepina e seus derivados, seguidos de
outros medicamentos, como a fenitoína,
gabapentina e pregabalina. Com o uso desses
medicamentos, é necessário o acompanhamento
clínico de possíveis efeitos adversos.
Ademais, é importante ressaltar que, o
tratamento farmacológico geralmente não
surte efeito imediato e, em algumas
ocasiões, não é o suficiente para a redução
da dor.
Dessa forma,
outras abordagens terapêuticas podem ser
utilizadas, incluindo pequenos procedimentos
invasivos, como o bloqueio do nervo com a
injeção local de toxina botulínica. Essa
estratégia pode proporcionar alívio
temporário da dor; em algumas situações
múltiplas injeções são necessárias para
alcançar o alívio desejado, visto que a
magnitude e duração do efeito podem ser
diferentes entre as pessoas.
Decide-se
pelos procedimentos cirúrgicos quando estas
estratégias terapêuticas supracitadas não
conseguem alcançar o resultado esperado. Em
relação ao tratamento cirúrgico, há alguns
pontos que precisam ser levados em
consideração, como estado de saúde geral,
idade, nível de dor e disponibilidade para o
procedimento. O tratamento cirúrgico é
delicado e preciso, especialmente quando a
área afetada é pequena. Para a neuralgia do
trigêmeo pós-traumática, em geral, dois
procedimentos cirúrgicos podem ser
indicados: a rizotomia, que consiste no
bloqueio temporário ou definitivo de um ou
mais ramos do nervo, apresentando alívio da
dor em aproximadamente 80% dos pacientes; e
a radiocirurgia estereotáxica, onde é
administrado um feixe de radiação
concentrado e preciso no ramo afetado,
apresentando alívio em aproximadamente 70%
dos pacientes em algumas semanas.
É evidente que
a “harmonização facial definitiva”, assim
como outras cirurgias plásticas, podem
trazer benefícios que perpassam as
características meramente físicas, mas
também associadas a uma melhora da
autoestima e bem-estar. Porém, é importante
ponderar os riscos envolvidos neste
procedimento invasivo, uma vez que lesões ao
nervo trigêmeo podem causar dor crônica
importante, de difícil controle, com
impactos negativos em diversas áreas da vida
cotidiana e que, em muitos casos, o
tratamento não é tão acessível. Por fim, é
importante buscar profissionais capacitados
e competentes, que contrabalançam os riscos
e benefícios deste procedimento estético, e
lembrar que não vale tudo em nome da beleza
– ainda quando se trata de um “padrão
estético estabelecido”.
Caso você
queira ler um pouco mais sobre a busca pelo
“corpo perfeito” e as dores que podem
decorrer desses procedimentos, acesse o
Editorial DOL nº 264 – “A dor do corpo
perfeito”, clicando
AQUI. Para
ler sobre novas possibilidades de tratamento
da dor neuropática usando células-tronco,
acesse o Editorial DOL nº 279 – “Tratamentos
com células-tronco e seus derivados podem
levar à cura da dor neuropática?”, clicando
AQUI.
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of life of posttraumatic trigeminal
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* Aluno de
doutorado - UnB - disciplina da
Pós-Graduação
** Aluna de
doutorado - UFBA