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Compreendendo e controlando a dor inflamatória

 

 

Este é um projeto em construção permanente. O texto de abertura é de caráter jornalístico, ao qual serão anexados hipertextos explicativos {E}, de complementação científica {C}, de interesse médico {M}, portais relacionados ao assunto {P} e explicação de alguns termos que estão em nosso Dicionário de DOR {D}. Gostaríamos que você, nosso leitor, nos desse sugestões para facilitar a compreensão dos textos, enviando-nos informações, pontos a serem acrescentados e comentários ou ilustrações, que poderão ser inseridos ao texto ou anexados como hipertextos.

 

Figura 1: O Templo da Inflamação

Será que, como alguns santos, os cientistas fazem milagres? Muita gente gostaria de ouvir “dor nunca mais...”, mas por acaso os cientistas pretendem abolir todas as dores? Será que o homem precisa da dor? A dor é a percepção de uma experiência sensorial nociceptiva (noceo = nocivo), com conotação (tonalidade) afetiva aversiva e desagradável, oposta ao prazer. Mas não foi somente o prazer (ou a ausência dele) que garantiu o desenvolvimento e a sobrevivência de nossa espécie. É sempre necessária uma estimulação sensorial forte quando a nossa sobrevivência corre perigo. É preciso um sinal que dê a percepção de que algo está errado na relação entre o indivíduo e o ambiente ou algo de anormal está ocorrendo em seu corpo. Esta percepção de “algo errado” foi selecionada por milhões de anos durante a evolução das espécies. O desafio sempre foi sobreviver quando as condições externas favoreciam o nosso desaparecimento. Pelos acasos evolutivos, sem a Natureza dar saltos, os seres vivos presentes neste nosso planeta desenvolveram mecanismos de auto-proteção contra estímulos ambientais nocivos. A nocicepção (percepção do que causa dano) certamente foi fundamental para que os animais aprendessem a viver e sobreviver em um ambiente inóspito. É clássico o exemplo de crianças que, por defeito genético, não sentem dor, tendo uma vida extremamente problemática, morrendo precocemente.

 

O homem sempre conviveu com a dor, mas também sempre tentou dominá-la. Se é óbvia a contribuição das dores agudas para a sobrevivência, é difícil apontar um papel evolucionário positivo para as dores crônicas.

 

De uma forma simplificada existem dois diferentes tipos de dor aguda: aquele que está relacionado com o ambiente (alo-nocicepção, alo = fora) e aquele relacionado com a percepção de ocorrências em seu próprio organismo (proprio-nocicepção, proprius = de si).

 

Os mecanismos nervosos selecionados para a nocicepção ambiental envolvem uma transmissão neuronal do estímulo muito rápida (±120 m/s, ± 450 km/h) quando comparados com os sistemas que transmitem os estímulos proprio-nociceptivos originários de um tecido injuriado (± 0,4 m/s, ± 1,5 km/h). O calor ou o frio intenso, ou mesmo a picada de uma agulha, é rapidamente detectado e reconhecido pelo organismo, que se protege do estímulo nocivo. Como já mencionado anteriormente, a ausência destas respostas poderia levar a uma lesão que colocaria em cheque a vida do indivíduo.

 

Nós vivemos, todavia, em um ambiente cujas agressões podem ser menos dramáticas, mais lentas, porém não menos perigosas. Uma bactéria ou um vírus entra sorrateiramente em um tecido e se reproduz lentamente levando a uma inflamação infecciosa aguda. Uma outra situação, mais irreverente (talvez um erro em nossa evolução), é quando o nosso organismo fabrica substâncias contra nossos próprios tecidos, como, por exemplo, os anticorpos responsáveis pelas doenças auto-imunes (artrite reumatóide). O resultado, neste caso, é uma resposta inflamatória em várias articulações.

Uma inflamação pode ser resolvida por mecanismos biológicos ou com a utilização da terapêutica medicamentosa. Esta inflamação aguda, entretanto, pode persistir e cronificar-se. Uma inflamação persistente ou recidivante (crônica com períodos de agudização) pode levar à destruição permanente dos tecidos. Freqüentemente estes processos são dolorosos e de difícil controle.

 

Figura 2: Caminhos da Dor (SNC)

Uma resposta tecidual inflamatória aguda é caracterizada pelos famosos sinais cardinais: rubor, calor, tumor e dor. Pense numa espinha nascendo no rosto, ou nas costas esbeltas de uma banhista que se esqueceu ao sol. Aproxime a mão vagarosamente da pele avermelhada (rubor) e sua mão perceberá que ela está levemente mais quente do que a sua pele normal. Agora seja chato! Dê uma cotucadinha na espinha ou uma palmadinha nas sinuosidades da amiga. Mas cuidado! Você sabe que após uma fraca queimadura de sol, basta um chuveiro morno para causar dor (nocicepção inflamatória). É que um tecido inflamado fica muito mais sensível a estímulos que normalmente não produzem ou produzem pouca dor. Este fenômeno é característico da dor inflamatória e é devido à sensibilização dos neurônios nociceptivos. A figura acima dá uma informação enganosa. A dor inflamatória não ocorre imediatamente após ou durante o estímulo nocivo. A sensibilização dos nociceptores ocorre pela ativação da “cascata de citocinas”, que necessita de tempo para se instalar, pois é decorrente de processos metabólicos neuronais.

 

Assim como temos um sistema neurológico para conduzir as sensações visuais e auditivas da periferia ao cérebro, as sensações dolorosas (nocicepção) também têm um complexo sistema de transmissão. Neste sistema há mecanismos que amplificam ou inibem, no neurônio periférico, a entrada do estímulo doloroso. Há também mecanismos centrais associados à definição da qualidade e aprendizado da dor, isto é, da percepção e descrição da dor (vide abaixo). Embora os neurônios centrais possam amplificar ou diminuir os sinais “dolorosos”, o neurônio primário nociceptivo tem um papel fundamental na dor inflamatória. Uma vez estimulado, eles geram e conduzem o estímulo para a medula espinal, passando por vários caminhos até chegar a algumas áreas do córtex cerebral, onde a sensação nociceptiva é detectada e analisada (processo de percepção). O neurônio sensitivo primário faz a sua primeira sinapse em regiões bem definidas (lâminas de Rexel) no corno posterior da medula. Hoje, sabe-se que entre um neurônio e outro existe uma fenda, desta forma o sinal neuronal tem que “saltar” de um neurônio para o outro através da chamada fenda sináptica. Raramente há condução elétrica entre um neurônio e outro. A transmissão na sinapse se dá através da liberação, pelo terminal nervoso (dendrito), de substâncias (mediadores primários e intermediários) que atuam nos receptores do axônio do neurônio subseqüente. Entre os mediadores mais importantes na medula espinal estão o glutamato e as prostaglandinas.

 

Atualmente, a consciência da experiência de sensação da dor é entendida como uma função cortical. O impulso nervoso sobe pela medula e atinge a parte basal do cérebro, onde faz a segunda sinapse (relê talâmico). Os sinais podem se dirigir diretamente para o córtex (parietal anterior) ou estimularem o sistema nervoso neuro-vegetativo (produção de sudorese, aumento de pressão sanguínea e freqüência cardíaca etc). Os estímulos nociceptivos também se dirigem para o sistema límbico (amígdala), que define a tonalidade afetiva da dor e é um dos sítios de ação da morfina. Neste local você tem a sensação mas não tem a percepção da dor: “a dor não dói”. O estímulo finalmente atinge a área parietal posterior, onde acontece a integração da rede neuronal nociceptiva, ocorrendo, então, a percepção (interpretação) da dor.

 

Os estudos contemporâneos que permitem definir a localização e o momento de chegada dos estímulos no córtex baseiam-se na avaliação regional do fluxo sangüíneo ou do incremento do metabolismo (aumento de consumo de glicose ou atividade oxidativa) pelas células cerebrais, utilizando o PET (Tomografia por Emissão de Pósitron) e fMRI (Imagens Funcionais por Ressonância Magnética). Estes métodos detectam dor aguda, porém não detectam dor espontânea referida pelo paciente (ongoing pain). Todavia, detectam a presença de distúrbios neuro-funcionais de redes neuronais, associados à dor crônica (p.ex., dor neuropática). Estímulos nociceptivos constantes produzem imagens de intensidade variável em diferentes indivíduos, mas com uma ordenada distribuição temporal entre as áreas corticais. Há um retardo dos sinais entre as áreas de detecção do estímulo doloroso e aquelas relacionadas com sua percepção (consciência).

 

Os animais sentem dor? Como a dor envolve uma atividade subjetiva (percepção) e capacidade verbal de descrição, não temos a possibilidade de saber se os animais sentem dor. Eles apresentam respostas fisiológicas ou comportamentais frente a estímulos que inferimos serem semelhantes à dor humana. Assumimos que tais respostas são devido a uma sensação nociceptiva desencadeada pelos estímulos detectados e transmitidos pelo sistema nervoso nociceptivo do animal. O grande argumento de que esta hipótese é correta e relevante vem da observação científica de que drogas analgésicas no homem são antinociceptivas nos animais. Da mesma maneira, drogas que são antinociceptivas nos animais, freqüentemente são analgésicas no homem.

 

Figura 3: Cenário Inflamatório

Citocinas – conversação entre as células

As dores proprio-nociceptivas podem ter três origens em nosso organismo: a) de um tecido inflamado (dor inflamatória); b) devido a uma disfunção fisiológica em um órgão (dor visceral, p. ex. cólicas) ou c) em um nervo (dor neuropática). A dor neuropática ocorre em um nervo permanentemente lesado por um trauma físico, biológico, inflamatório ou infeccioso (p.ex. a dor que ocorre após uma infecção intensa por herpes, a chamada “dor do nervo trigêmio”).

 

Um estímulo nocivo externo ou um “corpo estranho” detectado pelo tecido pode causar uma injúria tecidual. Nestas circunstâncias ocorre uma inflamação. Durante o processo inflamatório há mudanças no cenário celular, com o surgimento de células de “defesa”. Estas mudanças são conseqüências da conversação (química) entre as várias células locais. Os mediadores desta conversa, chamados citocinas e quimiocinas, são liberados em seqüência, em forma de cascata.

 

As substâncias liberadas pelo desencadear do processo inflamatório promovem a sensibilização do nociceptor permitindo, assim, que o estímulo ative o nociceptor do neurônio inflamatório periférico.

 

Podemos, de forma simplificada, usar o funcionamento de uma campainha (ou a buzina de um carro) para ilustrar algumas características dos vários tipos de neurônios primários nociceptivos.

 

Figura 4: Esquema Geral

O soar da campainha seria o “transmitir a dor” e o botão da campainha representaria os receptores localizados na membrana dos neurônios sensitivos primários (nociceptores distribuídos por todas as vísceras e tecidos do organismo). Uma campainha é energizada eletricamente (bateria neste caso) e o botão simplesmente interrompe a corrente.

 

Quando se aperta o botão, o circuito fecha (eletrifica o circuito) e a campainha toca. Isto é, quando o nociceptor é ativado, gera localmente um potencial de ação que se transmite pelo neurônio até a medula, onde o sinal é transferido para o segundo neurônio.

 

Figura 5: Alo-Nocicepção

Receptor mecano-termo-sensitivo, Polimodal de Alto Limiar (PMAL)

Os nociceptores para detecção de estímulos ambientais obviamente se apresentam em maior número na pele. As vias nervosas da nocicepção ambiental (alo-nocicepção), semelhantemente às campainhas, já estão energizadas (bateria pronta). Basta um toque para que a campainha soe, porém, o botão desta campainha é duro de apertar (nociceptores de alto limiar). Na inflamação ocorre sua sensibilização (hiperalgesia, alodinia ou hipernocicepção). Nestas condições, um estímulo que era pouco ou inefetivo passa a ser doloroso.

 

Há um grupo de receptores que parecem ser os mais relevantes para a dor inflamatória. São os chamados de receptores silenciosos ou dormentes (sleeping nociceptors), que representam 30% dos nociceptores da pele. Estes não são ativados mesmo com um estímulo forte, necessitando serem previamente sensibilizados para sua ativação.

 

Para a campainha inflamatória tocar, é necessário ativar a bateria (daí, então, o botão pode fechar o circuito e tocar a campainha). Os neurônios nociceptivos inflamatórios primários (NNIP) estão “afuncionais” ou com limiar muito alto (o botão da campainha é duro de apertar!).

 

Figura 6: Silenciosos ou PMAL

Os mediadores secundários ou segundos mensageiros – presentes no interior da célula neuronal – são responsáveis pela fosforilação de canais localizados na membrana celular, tornando os nociceptores funcionais.

 

No estado sensibilizado dos NNIP, os mediadores ionotrópicos, presentes no local da inflamação, conseguem ativar os nociceptores mesmo em pequenas quantidades. Mas, talvez mais importantes que os mediadores, são os estímulos mecânicos, que em condições normais não produzem dor e agora são capazes de causá-la (lembrem-se da espinha no rosto e da queimadura de sol). Estes mediadores ativadores dos nociceptores são denominados de mediadores primários nociceptivos ionotrópicos. São ionotrópicos porque a geração (potencial gerador) e a condução (potencial de ação) do estímulo envolvem fundamentalmente trocas iônicas, principalmente entre Na+ e K+.

 

Um estímulo nocivo causa uma injúria tecidual induzindo mudança do cenário celular decorrente da liberação de mediadores inflamatórios, que são basicamente de 3 tipos: os mediadores nociceptivos “intermediários” (MNI), os primários (MNP), e os segundos mensageiros ou secundários (MNS). Os mediadores nociceptivos “intermediários” (MNI) - citocinas e quimiocinas - originam se de células locais ou migratórias, estimulando a liberação de outros mediadores intermediários ou de mediadores primários.

 

O esquema abaixo ilustra observações experimentais. Uma inflamação induzida por uma substância irritante chamada carragenina ou por uma toxina bacteriana (lipopolisacarídeo – LPS) estimula as células residentes do tecido a liberarem uma citocina denominada TNF-a (Fator de Necrose Tumoral) que, por sua vez, induz a liberação de outras duas citocinas: interleucina 1-Beta (IL-1b) e Interleucina-8 (IL-8). A IL-1b promove a ativação de uma enzima denominada ciclooxigenase (COX) responsável pela produção de prostaglandinas. A IL-8 promove a produção local de aminas simpatomiméticas (p. ex. dopamina e noradrenalina). As prostaglandinas e as aminas simpatomiméticas atuam nos receptores dos neurônios sensitivos primários (NSP) induzindo a sua sensibilização.

 

Figura 7: Cascata de Citocinas

 

As substâncias denominadas glicocorticóides inibem a liberação de várias citocinas e a ativação das ciclooxigenases, que são enzimas responsáveis pela liberação de prostaglandinas. Portanto, os corticóides são analgésicos por bloquearem a liberação de várias citocinas hiperalgésicas.

 

Figura 8: Dor inflamatória

 

A figura acima sumariza os conceitos até agora desenvolvidos. Na inflamação há liberação de mediadores primários que causam sensibilização de nociceptores ou sua ativação. Esta sensibilização promovida pelos mediadores secundários (mecanismo metabotrópico), ocorre pelo abaixamento do limiar de ativação dos nociceptores e pela facilitação da condução neuronal por tornar funcionais uma família de canais de sódio denominadas tetrodotoxina-resistentes (TTX-r). Estes canais parecem ser específicos dos neurônios nociceptivos inflamatórios. Atualmente estes canais constituem um dos alvos mais importantes para o desenvolvimento de analgésicos (inibidores de canais de sódio TTX-r). A hipernocicepção (hiperalgesia) é um denominador comum de todos os processos inflamatórios.

 

Os analgésicos do tipo da aspirina funcionam por inibirem a formação de prostaglandinas. Estes analgésicos são também chamados de drogas antiinflamatórias não-esteroidais (AINES), os quais previnem a sensibilização dos nociceptores. Na inflamação há duas “prostaglandinas” sensibilizadoras principais, a PGE2 e a prostaciclina. A prostaciclina produz uma sensibilização imediata e de curta duração do NNIP. Ao contrário, quando a PGE2 estiver presente na inflamação, causará uma sensibilização demorada. Na dor de cabeça é possível que a prostaciclina liberada pelo endotélio seja a substância sensibilizadora. Nesta eventualidade, o uso de uma droga do tipo da aspirina tem um efeito rápido. Isto não ocorre em outras eventualidades. Na dismenorréia (cólica menstrual), por exemplo, consegue-se prevenir o desenvolvimento da dor como tratamento preventivo. Todavia, quando ela já está estabelecida, o efeito das drogas do tipo da aspirina não é imediato e somente após sucessivas administrações alcança-se um efeito analgésico. Entretanto, administrações irregulares podem deixar de controlar a dor, pois pode ocorrer a formação de prostaglandinas que sensibilizam novamente os NNIP.

 

Há um grupo de substâncias que em contra-posição às drogas do tipo da aspirina são capazes de bloquearem diretamente a sensibilização dos nociceptores. Estas atuam por um mecanismo molecular que bloqueia a diminuição do limiar dos nociceptores, portanto antagoniza a dor inflamatória. Este é o grupo ao qual pertence a dipirona (Novalgina®).

 

Concluindo, neste texto discutimos três mecanismos da analgesia periférica: a) o dos corticóides, que bloqueiam a cascata de citocinas, b) o dos inibidores da ciclooxigenase (drogas do tipo da aspirina), que previnem a sensibilização dos nociceptores, e, finalmente, c) drogas que inibem diretamente a sensibilização, como a dipirona.

 

Talvez no futuro possamos inventar uma terapia gênica que acabe com os genes responsáveis pela produção de substâncias fabricadas pelos tecidos e que são responsáveis pela dor. O problema é que estas substâncias são importantes em muitos processos fisiológicos fundamentais para o nosso organismo, mas a sorte pode estar do nosso lado em encontrarmos outras maneiras de controlar a dor.