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Editorial do mês

 

 

Enxaqueca em autistas
Lara Santos de Oliveira e Larissa Sousa Silva Bonasser *

 

O transtorno do espectro autista (TEA), também conhecido como autismo, é um transtorno do neurodesenvolvimento altamente hereditário e heterogêneo, que atraiu bastante atenção de cientistas e médicos nos últimos anos. Seu diagnóstico é realizado através do relato detalhado da história de desenvolvimento da criança, que geralmente ocorre através dos pais, e da avaliação comportamental e clínica do indivíduo por médicos treinados.1 Essa avaliação geralmente é realizada por um pediatra do desenvolvimento ou por um psiquiatra de crianças e adolescentes, que pode solicitar exames e avaliações neurológicas.2 Estima-se que em todo o mundo uma a cada 100 crianças seja autista, mas alguns estudos já encontraram números bem maiores,3 que podem chegar a uma proporção de 1 para 36.4,5

 

Embora os autistas sejam muito diferentes entre si, é comum eles apresentarem prejuízo nas áreas de comunicação e interação social, comportamentos atípicos, restritos e/ou repetitivos e níveis variados de deficiência intelectual.2,6,7 O autismo pode ser acompanhado por várias condições, como transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, bipolaridade, ansiedade, esquizofrenia, distúrbios do sono, enxaqueca, epilepsia, ansiedade, depressão, problemas gastrointestinais, entre outras.6-8

 

A respeito da enxaqueca, trata-se de uma condição neurológica definida por uma dor de cabeça latejante, que também pode ser acompanhada por sensibilidade à luz, cheiros e barulhos, náuseas e vômitos, tonturas, sensibilidade a movimentos, além de formigamentos e dormência no corpo.9 Essa condição é mais comum em pessoas com menos de 50 anos10 e duas vezes mais frequente em mulheres do que em homens.11 Alguns fatores podem aumentar o risco de desenvolver enxaqueca, como o uso excessivo de analgésicos, obesidade, depressão, estresse, distúrbios craniomandibulares, problemas de sono, uso excessivo de cafeína, ansiedade, jejum, alterações hormonais, alguns alimentos como chocolate e frutas cítricas, além de fatores genéticos.9,11,12

 

A associação entre enxaqueca e autismo ainda é pouco explorada, mas algumas pesquisas já observaram que as duas condições compartilham mecanismos fisiopatológicos comuns.8 Variantes genéticas podem contribuir para o desenvolvimento de autismo e enxaqueca de várias maneiras. Elas podem, por exemplo, alterar a função de neurotransmissores, receptores ou canais iônicos, o que pode levar a alterações na excitabilidade neuronal, na neuroplasticidade e na modulação da dor.

 

Tanto o TEA quanto a enxaqueca podem estar ligados ao comprometimento do processamento sensorial, levando a reações exageradas a estímulos externos. Além disso, ambas condições têm sido associadas a disfunções no sistema serotoninérgico, sugerindo uma possível ligação neuroquímica. A serotonina é um neurotransmissor envolvido em muitas funções, incluindo a modulação do humor, do comportamento, da dor e da função cerebral. Estudos têm demonstrado que pessoas com autismo e enxaqueca apresentam níveis reduzidos de serotonina no cérebro.

 

A desregulação serotoninérgica pode contribuir para a relação entre autismo e enxaqueca de várias maneiras. Por exemplo, a serotonina está envolvida na modulação da excitabilidade neuronal. A redução dos níveis de serotonina pode levar a uma maior excitabilidade neuronal e contribuir para os sintomas comportamentais e neurológicos do autismo, como a dificuldade de interação social e a hipersensibilidade a estímulos ambientais. Esse neurotransmissor também está envolvido na modulação da dor. A redução dos níveis de serotonina pode levar a uma maior sensibilidade à dor, o que pode contribuir para os sintomas da enxaqueca, como a dor de cabeça, a náusea e os vômitos. Além disso, a serotonina está envolvida na modulação da função cerebral. A redução de seus níveis pode levar a alterações na neuroplasticidade, o que pode contribuir para a vulnerabilidade a ambas as condições. Estudos têm demonstrado que tratamentos que aumentam os níveis de serotonina no cérebro podem ser eficazes no tratamento do autismo e da enxaqueca. Por exemplo, os antidepressivos, que aumentam os níveis de serotonina, são comumente usados para tratar o autismo e a enxaqueca.

 

Alguns estudos investigaram a ocorrência de enxaqueca em autistas. Um deles realizou uma revisão do prontuário de pacientes com TEA para identificar os tipos de dor de cabeça vivenciados por eles e observou que 61% dos pacientes sofriam de enxaqueca,13 mostrando que essa condição pode ser muito frequente nesses indivíduos. Além disso, uma pesquisa online realizada com pais de crianças autistas reuniu relatos dos pais sobre comportamentos, sinais e sintomas de seus filhos. Os pesquisadores observaram que as crianças com TEA que apresentaram enxaqueca, também apresentaram sintomas de ansiedade e hiper-reatividade sensorial de forma mais intensa que as crianças sem enxaqueca,14 demonstrando uma evidência de ligação entre as três condições e possíveis mecanismos fisiopatológicos em comum. Outro estudo de coorte investigou comorbidades em indivíduos do Reino Unido com TEA diagnosticados na vida adulta. Essa pesquisa verificou que as comorbidades neurológicas foram mais frequentes no grupo com TEA em comparação ao grupo controle, especialmente a enxaqueca,15 mostrando a associação entre as duas condições. Somado a isso, um estudo longitudinal realizado com crianças e adolescentes de Taiwan observou que os indivíduos autistas apresentaram um risco significativamente maior de desenvolver enxaqueca mais tarde na vida quando comparados aos indivíduos sem TEA,16 demonstrando, mais uma vez, possíveis mecanismos fisiopatológicos em comum. Esse mesmo estudo defendeu que o diagnóstico e o tratamento da enxaqueca devem ser integrados aos cuidados de crianças e adolescentes com TEA.16

 

Por fim, duas revisões narrativas exploraram a relação entre autismo e enxaqueca. Uma delas observou que, apesar de as amostras de alguns estudos serem pequenas, os indivíduos estudados apresentaram uma alta taxa de sintomas de enxaqueca.8 A outra constatou que a dor de cabeça provavelmente é subestimada em autistas, possivelmente devido às dificuldades de comunicação presentes nesses indivíduos, podendo afetar sua capacidade de relatar dores.17 Esses resultados mais uma vez confirmam que a enxaqueca pode ser mais frequente em autistas do que se imagina, além de alertar para a carência de diagnóstico e tratamento de enxaqueca nessa população.

 

Identificar, diagnosticar e tratar dores de cabeça não é simples para pacientes que conseguem se comunicar verbalmente, e pode ser ainda mais desafiador em autistas. Dessa forma, é importante considerar as necessidades de autistas não-verbais ou com alterações intelectuais que podem sentir dores de cabeça, mas não conseguem descrever os seus sintomas.17 Outro aspecto a ser considerado é que a dor no ser humano tem uma dimensão emocional e social. Assim, a expressão da dor inclui diversas manifestações como alterações na expressão facial, atividade verbal, postura, movimento e comportamento. Portanto, é razoável esperar diferenças nos relatos de dor por indivíduos com TEA.17

 

Uma ferramenta que poderia auxiliar no diagnóstico da enxaqueca em autistas seria a aplicação de escalas de dor apropriadas para esses indivíduos. Algumas pesquisas descreveram esses instrumentos para avaliar a intensidade da dor em crianças e adolescentes com deficiência cognitiva ou não-comunicantes, entre eles: Lista de Verificação de Dor em Crianças Não-comunicantes - Revisada (NCCPC-R), Lista de Verificação de Comportamento da Dor (CPB - 10 item version), escala Rosto, Pernas, Atividade, Choro e Consolabilidade - Revisada (r-FLACC), Perfil de Dor Pediátrica (PPP), e Escala de Classificação Numérica Individualizada (INRS).18-20 No entanto, nenhum estudo mostrou a aplicação dessas ferramentas em autistas para avaliar a enxaqueca.

 

Apesar de poucos estudos investigarem a associação entre autismo e enxaqueca, observa-se que essas duas condições podem estar relacionadas. Devido à dificuldade de comunicação presente em muitos indivíduos autistas, a enxaqueca pode não ser percebida e consequentemente subestimada nessa população, o que pode trazer mais prejuízos e desconforto para essas pessoas. Dessa forma, é importante que os pais e/ou cuidadores observem sinais e procurem auxílio profissional para realizar um diagnóstico precoce e o tratamento adequado da enxaqueca. Além disso, uma melhor compreensão dos mecanismos fisiopatológicos comuns entre as duas condições e a utilização de instrumentos, como as escalas de dor, podem melhorar a gestão clínica desses pacientes.

 

Referências:

1. Lord C, Brugha TS, Charman T, et al. Autism spectrum disorder. Nat Rev Dis Primers. 2020;6(1):5. Published 2020 Jan 16. doi:10.1038/s41572-019-0138-4

2. Genovese A, Butler MG. Clinical Assessment, Genetics, and Treatment Approaches in Autism Spectrum Disorder (ASD). Int J Mol Sci. 2020;21(13):4726. Published 2020 Jul 2. doi:10.3390/ijms21134726

3. Autism. World Health Organization (WHO). Atualizado em 15 de novembro de 2023. Acessado em 2 de novembro de 2023. https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/autism-spectrum-disorders?gclid=CjwKCAjwkY2qBhBDEiwAoQXK5eLah3WdMCXh_uZwJKunN7Y-4hpDXQN8czpggZLzHYsaHI_R3eeXuBoCnu0QAvD_BwE

4. Data and Statistics on Autism Spectrum Disorder | CDC. Centers for Disease Control and Prevention. Atualizado em 4 de abril de 2023. Acessado em 2 de novembro de 2023. https://www.cdc.gov/ncbddd/autism/data.html

5. Autism Spectrum Disorder (ASD). National Institute of Mental Health (NIMH). Atualizado em abril de 2023. Acessado em 2 de novembro de 2023. https://www.nimh.nih.gov/health/statistics/autism-spectrum-disorder-asd

6. Lord C, Elsabbagh M, Baird G, Veenstra-Vanderweele J. Autism spectrum disorder. Lancet. 2018;392(10146):508-520. doi:10.1016/S0140-6736(18)31129-2

7. Sharma SR, Gonda X, Tarazi FI. Autism Spectrum Disorder: Classification, diagnosis and therapy. Pharmacol Ther. 2018;190:91-104. doi:10.1016/j.pharmthera.2018.05.007

8. Vetri L. Autism and Migraine: An Unexplored Association?. Brain Sci. 2020;10(9):615. Published 2020 Sep 6. doi:10.3390/brainsci10090615

9. Enxaqueca | Biblioteca Virtual em Saúde MS. Biblioteca Virtual em Saúde MS. Atualizado em maio de 2014. Acessado em 9 de novembro de 2023. https://bvsms.saude.gov.br/enxaqueca/

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11. Amiri P, Kazeminasab S, Nejadghaderi SA, et al. Migraine: A Review on Its History, Global Epidemiology, Risk Factors, and Comorbidities. Front Neurol. 2022;12:800605. Published 2022 Feb 23. doi:10.3389/fneur.2021.800605

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* Alunas de mestrado - UnB - disciplina da Pós-Graduação