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Editorial do mês

 

 

O manejo da dor pós-operatória de pacientes com anemia falciforme
Elizabete Cristina de Lira Santiago1 e Silvio Caetano Alves Júnior2

 

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS 2022), estima-se que as desordens da hemoglobina em diversas doenças, dentre elas a anemia falciforme, comprometam aproximadamente 7% da população mundial e que, quando não reconhecidas precocemente, levam à morte nos primeiros anos de vida. A doença falciforme é uma das principais causas de morte por doença genética no mundo. É o distúrbio da hemoglobina mais prevalente, afetando pessoas de ascendência africana, hereditária e afeta os glóbulos vermelhos, os quais se apresentam em forma de foice (falciforme).

 

A anemia falciforme é uma doença grave e progressiva que afeta diversos sistemas do corpo. Pode ser controlada se houver diagnóstico precoce, tratamento adequado e acompanhamento profissional especializado contínuo. Por isso, a necessidade da detecção precoce da doença, logo após o nascimento (Rees et al., 2010). No Brasil estima-se entre 60 e 100 mil pacientes com doença falciforme atualmente. O diagnóstico pode ser feito em triagem neonatal por unidades públicas e particulares habilitadas pelo Ministério da Saúde e o acompanhamento ambulatorial dos pacientes em serviços distribuídos em todo o território nacional (SUS 2022). São necessárias estratégias que contemplem a equidade, a inovação tecnológica e a participação dos pacientes quanto às decisões relativas à sua saúde, as quais devem ser fundamentadas nos princípios de boa prática clínica e nos dados científicos disponíveis. É igualmente necessária, a formação pessoal no atendimento aos pacientes com a doença, envolvendo diferentes níveis de atenção à saúde e equipe multiprofissional (Fiocruz 2022).

 

A anemia falciforme é caracterizada por mutações no gene que codifica a subunidade beta da hemoglobina. Hemoglobina é uma proteína encontrada no sangue dos vertebrados, mais precisamente no interior das células do sangue chamadas de hemácias. É uma proteína globular que apresenta estrutura quaternária, sendo formada por quatro subunidades. Cada subunidade da globina está associada ao cofator heme, que pode carregar uma molécula de oxigênio (Kato et al. 2018). Ocorre oxigenação inadequada dos tecidos e, consequentemente, gera dor nas articulações, cabeça, costas e abdômen. Pode também levar à insuficiência renal, cegueira, e problemas cardíacos (OMS 2022).

 

Toda vez que a hemoglobina modificada geneticamente libera o oxigênio (desoxigenação) nos tecidos que dependem do oxigênio para realizar seu metabolismo promove a modificação gradual da hemoglobina formando polímeros. A cada troca gasosa realizada pela hemoglobina esses polímeros de hemoglobina modificada geneticamente crescem e formam fibras longas, aumentando a rigidez celular e distorcendo a membrana dos eritrócitos (glóbulos vermelhos), levando gradativamente ao formato de foice. Fato que acarreta falha energética celular, estresse celular, desidratação e hemólise prematura (Prithu Sundd, et all., 2018).

 

Na fisiopatologia da doença é frequente a anemia crônica, a polimerização da hemoglobina, a vaso-oclusão e a hemólise. A dor é um desafio no tratamento da anemia falciforme e está diretamente vinculada com a manifestação de vaso-oclusão (obstrução dos vasos sanguíneos por acúmulo de eritrócitos falcilizados), e de modo geral as medidas são paliativas e estão voltadas para minimizar os eventos de vaso-oclusão e para o alívio da dor com analgésicos opioides e não-opioides (Rees et al., 2010). Ocorre ainda lesão dos tecidos provocada principalmente por hipóxia (falta de oxigênio), resultado da vaso-oclusão. Os sintomas podem ser variados e dependem da idade do paciente, sendo os mais comuns febre, tosse, dor intensa, dispneia e hemólise. Na grande maioria, os casos de hospitalizações estão relacionados a essas características da doença, mas, principalmente, devido à complexidade do controle da dor (Sundd et al. 2019).

 

O tratamento inicial mais utilizado para retardar ao máximo as manifestações da doença, incluindo a dor, é o uso da hidroxiureia. Esse composto auxilia na maior produção de hemoglobina fetal, diminuindo a quantidade de hemácias falciformes, levando a uma menor possibilidade de vaso-oclusão. Destaca-se a importância do uso da hidroxiureia para pacientes com anemia falciforme, por se tratar de uma prática eficaz para prevenção de futuras complicações e dor. A escolha terapêutica de primeira linha é a transfusão sanguínea, especialmente útil na prevenção de acidente vascular encefálico que é recorrente, e para facilitar o controle da dor causada por vaso-oclusão. Em casos da necessidade de cirurgia a transfusão também facilita traz benefícios para o controle da dor pós-operatória. Também favorece a recuperação destas pessoas, contribuindo para melhorar a cicatrização dos tecidos afetados pelo tratamento cirúrgico (Insabralde et al., 2021).

 

Os pacientes que apresentam a doença falciforme desenvolvem mais complicações pós-operatórias quando comparados a pacientes sem a doença, em especial a síndrome torácica aguda pós-operatória, infecções, acidente vascular encefálico, insuficiência renal aguda e crises de dor intensa causada por vaso-oclusão podendo levar a maior mortalidade. Por isso, é importante o planejamento, os cuidados e monitoramento adequado no pós-operatório pelos profissionais de saúde, na intenção de evitar ou minimizar a dor aguda, desidratação, hipóxia, acidose e hipotermia (Oyedeji and Welsby, 2021; Walker et al., 2021; Hernigou et al., 2020). Além disso, cirurgias eletivas devem ser evitadas em pacientes que estiverem apresentando quadro de febre ou crise de dor aguda, sendo recomendada a resolução do quadro anteriormente ao procedimento (Walker et al., 2021).

 

A dor é uma condição clínica dominante ao longo da vida de pacientes com a doença falciforme, uma crise de dor aguda pode ocorrer no período pré-operatório, sendo algo indesejável e desafiador. Nessas condições é necessário o uso de analgésicos opioides e não-opioides de forma contínua. No pós-operatório o mesmo tratamento analgésico é indicado na tentativa de minimizar a dor causada tanto pela cirurgia quanto pelos eventos vaso-oclusivos (Walker et al., 2021, Gu et al., 2021).

 

O plano de controle de dor deve ser revisado ainda no período pré-operatório juntamente com o paciente, para discutir as opções ideais de analgesia. Alertar se o paciente estiver em tratamento de dor crônica e incluir observações sobre acesso venoso, quando já identificado dificuldade de acesso em ocasiões anteriores. Nesse plano de controle da dor é necessário incluir técnicas multimodais, que devem ser asseguradas em todas as etapas do período pré-operatório. Exemplos são bloqueio local/regional, analgesia controlada pelo paciente, analgesia controlada pela equipe de enfermagem, analgesia oral além de estratégias não farmacológicas (Walker et al., 2021; Hernigou et al., 2020).

 

A avaliação da dor utilizando instrumentos unidimensionais como a escala numérica de dor, e mesmo aqueles multidimensionais, deve ser utilizada regularmente durante todo o período, sendo essencial o encorajamento do relato de dor. Diferenciar a dor relacionada à ferida operatória daquela causada pela doença falciforme é importante para a adequada abordagem do problema tendo em vista que as crises de dor aguda são comuns e de difícil controle em pacientes com a doença falciforme (Walker et al., 2021). O manejo da dor por analgesia controlada pelo paciente é um método utilizado para administrar medicamentos por via endovenosa, peridural ou subcutânea. É considerado um método seguro e eficaz, realizando infusões intermitentes ou quando o paciente aciona o dispositivo, e programadas de acordo com o plano terapêutico. A dosagem de opioides aumenta ou diminui de acordo com a intensidade da dor, esse ajuste ocorre de forma progressiva para evitar o risco de depressão do sistema nervoso central (Pereira, et al., 2022; Hernigou et al., 2020). Para tal modalidade, é necessário uso do equipamento “bomba de analgesia controlada pelo paciente”. Também a orientação adequada ao paciente e familiares, incluindo informações e esclarecimentos sobre o controle da dor, causa da dor e instruções do uso da bomba. A utilização do medicamento na bomba deve se adequar com o caso clínico do paciente e o plano terapêutico proposto, porém, o medicamento mais utilizado é a morfina devido a sua baixa lipossolubilidade. Para a via peridural utiliza-se, frequentemente, ropivacaína 0,2% associada à fentanil (Pereira, et al., 2022, Duarte et al., 2009). O propósito de utilizar a bomba de analgesia controlada pelo paciente é infundir opioides conforme a intensidade da dor percebida pelo paciente, proporcionando melhora ou cessando a dor em repouso e, no máximo, permitindo que a dor seja classificada como de leve intensidade quando o paciente se apresenta em movimento (Duarte et al., 2009).

 

Os indivíduos com anemia falciforme que forem submetidos a procedimento cirúrgicos devem estar familiarizados com as técnicas de analgesia e participar de forma ativa do plano de controle da dor. Esse plano deve ser estruturado com a participação da equipe de saúde especialista em dor, anestesista e o paciente. Deve-se evitar realizar cirurgia eletiva em pacientes que estejam em crise de dor e a equipe que prestará cuidados ao paciente deve ser notificada com antecedência sobre esses sinais e sintomas.

 

Referências:

1 - Andréia Insabralde de Queiroz Cardoso, Marcos Antonio Ferreira Júnior, Carolina Mariano Pompeo, Caroline Neris Ferreira, Sarat Mayk Penze Cardoso, Maria Lúcia Ivo - Estudos econômicos completos sobre tratamentos da anemia falciforme • Acta Paul Enferm. 34, 2021;

2 - Charity I. Oyedeji, Ian J. Welsby; Optimizing management of sickle cell disease in patients undergoing surgery. Hematology Am Soc Hematol Educ Program 2021; 2021 (1): 405–410;

3 - Duarte, Leonardo Teixeira Domingues, Beraldo, Paulo Sérgio Siebra e Saraiva, Renato Angelo. Efeitos da analgesia peridural e do bloqueio contínuo do plexo lombar sobre a reabilitação funcional após artroplastia total do quadril. Revista Brasileira de Anestesiologia [online]. 2009, v. 59, n. 5;

4 - Gregory J. Kato1, Frédéric B. Piel2, Clarice D. Reid3, Marilyn H. Gaston4, Kwaku Ohene-Frempong5, Lakshmanan Krishnamurti6, Wally R. Smith7, Julie A. Panepinto8, David J. Weatherall9, Fernando F. Costa10 and Elliott P. Vichinsky11 Sickle cell disease Department of Medicine, University of Pittsburgh, doi:10.1038/nrdp.2018.10, 15 Mar 2018;

5 - Gu A, Agarwal AR, Fassihi SC, Pollard TG, Stoll WT, Campbell JC, Golladay GJ, Thakkar SC. Impact of sickle cell disease on postoperative outcomes following total hip arthroplasty. Hip Int. 2021 Oct 24:11207000211052224;

6 - Hernigou P, Housset V, Pariat J, Dubory A, Flouzat Lachaniette CH. Total hip arthroplasty for sickle cell osteonecrosis: guidelines for perioperative management. EFORT Open Rev. 2020 Oct 26;5(10):641-651;

7 - https://portal.fiocruz.br/programa/doenca-falciforme Fiocruz - Profa. Dra. Marilda de Souza Gonçalves - 16/11/2022

8 - https://www.afro.who.int/health-topics/sickle-cell-disease OMS 16/11/2022;

9 - https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2022/junho/governo-federal-reforca-necessidade-do-diagnostico-precoce-da-doenca-falciforme 16/11/2022;

10 - Janaina Martins de Souza, Patrick Elan Lemos Rosa, Roberta Lemos Souza, Geane Freitas Pires de Castro FISIOPATOLOGIA DA ANEMIA FALCIFORME – Revista transformar 8º edição 2016;

11 - Pereira, Lisa Catherine Miranda do Santos, Yamaguti, Siomara Tavares Fernandes e Mota, Tatiane Gloria daNursing actions in the management of pain related to the use of a patient-controlled analgesia pump during the postoperative period of cardiac surgery. BrJP [online]. 2022, v. 05, n. 02;

12 - Prithu Sundd, Mark T. Gladwin, and Enrico M. Novelli. Annual Review of Pathology: Mechanisms of Disease Pathophysiology of Sickle Cell Disease First published as a Review in Advance on October 17, 2018 https://doi.org/10.1146/annurev-pathmechdis- 012418-012838;

13 - Rees, D. C., Williams, T. N., Gladwin, M. T. Sickle cell disease. Lancet 376: 2018-2031, 2010;

14 - Sundd, P. et al., Annu. Ver. Pathol. Mech. Dis, v14, P263 – 292. 2019;

15 - Walker I, Trompeter S, Howard J, Williams A, Bell R, Bingham R, Bankes M, Vercueil A, Dalay S, Whitaker D, Elton C. Guideline on the peri-operative management of patients with sickle cell disease: Guideline from the Association of Anaesthetists. Anaesthesia. 2021 Jun;76(6):805-817;


1 Aluna de mestrado da UnB – Disciplina da Pós-Graduação, 2 Aluno de doutorado da FIOCRUZ-BA – Disciplina da Pós-Graduação