De acordo com
a Organização Mundial da Saúde (OMS 2022),
estima-se que as desordens da hemoglobina em
diversas doenças, dentre elas a anemia
falciforme, comprometam aproximadamente 7%
da população mundial e que, quando não
reconhecidas precocemente, levam à morte nos
primeiros anos de vida. A doença falciforme
é uma das principais causas de morte por
doença genética no mundo. É o distúrbio da
hemoglobina mais prevalente, afetando
pessoas de ascendência africana, hereditária
e afeta os glóbulos vermelhos, os quais se
apresentam em forma de foice (falciforme).
A anemia
falciforme é uma doença grave e progressiva
que afeta diversos sistemas do corpo. Pode
ser controlada se houver diagnóstico
precoce, tratamento adequado e
acompanhamento profissional especializado
contínuo. Por isso, a necessidade da
detecção precoce da doença, logo após o
nascimento (Rees et al., 2010). No Brasil
estima-se entre 60 e 100 mil pacientes com
doença falciforme atualmente. O diagnóstico
pode ser feito em triagem neonatal por
unidades públicas e particulares habilitadas
pelo Ministério da Saúde e o acompanhamento
ambulatorial dos pacientes em serviços
distribuídos em todo o território nacional
(SUS 2022). São necessárias estratégias que
contemplem a equidade, a inovação
tecnológica e a participação dos pacientes
quanto às decisões relativas à sua saúde, as
quais devem ser fundamentadas nos princípios
de boa prática clínica e nos dados
científicos disponíveis. É igualmente
necessária, a formação pessoal no
atendimento aos pacientes com a doença,
envolvendo diferentes níveis de atenção à
saúde e equipe multiprofissional (Fiocruz
2022).
A anemia
falciforme é caracterizada por mutações no
gene que codifica a subunidade beta da
hemoglobina. Hemoglobina é uma proteína
encontrada no sangue dos vertebrados, mais
precisamente no interior das células do
sangue chamadas de hemácias. É uma proteína
globular que apresenta estrutura
quaternária, sendo formada por quatro
subunidades. Cada subunidade da globina está
associada ao cofator heme, que pode carregar
uma molécula de oxigênio (Kato et al. 2018).
Ocorre oxigenação inadequada dos tecidos e,
consequentemente, gera dor nas articulações,
cabeça, costas e abdômen. Pode também levar
à insuficiência renal, cegueira, e problemas
cardíacos (OMS 2022).
Toda vez que a
hemoglobina modificada geneticamente libera
o oxigênio (desoxigenação) nos tecidos que
dependem do oxigênio para realizar seu
metabolismo promove a modificação gradual da
hemoglobina formando polímeros. A cada troca
gasosa realizada pela hemoglobina esses
polímeros de hemoglobina modificada
geneticamente crescem e formam fibras
longas, aumentando a rigidez celular e
distorcendo a membrana dos eritrócitos
(glóbulos vermelhos), levando gradativamente
ao formato de foice. Fato que acarreta falha
energética celular, estresse celular,
desidratação e hemólise prematura (Prithu
Sundd, et all., 2018).
Na
fisiopatologia da doença é frequente a
anemia crônica, a polimerização da
hemoglobina, a vaso-oclusão e a hemólise. A
dor é um desafio no tratamento da anemia
falciforme e está diretamente vinculada com
a manifestação de vaso-oclusão (obstrução
dos vasos sanguíneos por acúmulo de
eritrócitos falcilizados), e de modo geral
as medidas são paliativas e estão voltadas
para minimizar os eventos de vaso-oclusão e
para o alívio da dor com analgésicos
opioides e não-opioides (Rees et al., 2010).
Ocorre ainda lesão dos tecidos provocada
principalmente por hipóxia (falta de
oxigênio), resultado da vaso-oclusão. Os
sintomas podem ser variados e dependem da
idade do paciente, sendo os mais comuns
febre, tosse, dor intensa, dispneia e
hemólise. Na grande maioria, os casos de
hospitalizações estão relacionados a essas
características da doença, mas,
principalmente, devido à complexidade do
controle da dor (Sundd et al. 2019).
O tratamento
inicial mais utilizado para retardar ao
máximo as manifestações da doença, incluindo
a dor, é o uso da hidroxiureia. Esse
composto auxilia na maior produção de
hemoglobina fetal, diminuindo a quantidade
de hemácias falciformes, levando a uma menor
possibilidade de vaso-oclusão. Destaca-se a
importância do uso da hidroxiureia para
pacientes com anemia falciforme, por se
tratar de uma prática eficaz para prevenção
de futuras complicações e dor. A escolha
terapêutica de primeira linha é a transfusão
sanguínea, especialmente útil na prevenção
de acidente vascular encefálico que é
recorrente, e para facilitar o controle da
dor causada por vaso-oclusão. Em casos da
necessidade de cirurgia a transfusão também
facilita traz benefícios para o controle da
dor pós-operatória. Também favorece a
recuperação destas pessoas, contribuindo
para melhorar a cicatrização dos tecidos
afetados pelo tratamento cirúrgico (Insabralde
et al., 2021).
Os pacientes
que apresentam a doença falciforme
desenvolvem mais complicações
pós-operatórias quando comparados a
pacientes sem a doença, em especial a
síndrome torácica aguda pós-operatória,
infecções, acidente vascular encefálico,
insuficiência renal aguda e crises de dor
intensa causada por vaso-oclusão podendo
levar a maior mortalidade. Por isso, é
importante o planejamento, os cuidados e
monitoramento adequado no pós-operatório
pelos profissionais de saúde, na intenção de
evitar ou minimizar a dor aguda,
desidratação, hipóxia, acidose e hipotermia
(Oyedeji and Welsby, 2021; Walker et al.,
2021; Hernigou et al., 2020). Além disso,
cirurgias eletivas devem ser evitadas em
pacientes que estiverem apresentando quadro
de febre ou crise de dor aguda, sendo
recomendada a resolução do quadro
anteriormente ao procedimento (Walker et
al., 2021).
A dor é uma
condição clínica dominante ao longo da vida
de pacientes com a doença falciforme, uma
crise de dor aguda pode ocorrer no período
pré-operatório, sendo algo indesejável e
desafiador. Nessas condições é necessário o
uso de analgésicos opioides e não-opioides
de forma contínua. No pós-operatório o mesmo
tratamento analgésico é indicado na
tentativa de minimizar a dor causada tanto
pela cirurgia quanto pelos eventos
vaso-oclusivos (Walker et al., 2021, Gu et
al., 2021).
O plano de
controle de dor deve ser revisado ainda no
período pré-operatório juntamente com o
paciente, para discutir as opções ideais de
analgesia. Alertar se o paciente estiver em
tratamento de dor crônica e incluir
observações sobre acesso venoso, quando já
identificado dificuldade de acesso em
ocasiões anteriores. Nesse plano de controle
da dor é necessário incluir técnicas
multimodais, que devem ser asseguradas em
todas as etapas do período pré-operatório.
Exemplos são bloqueio local/regional,
analgesia controlada pelo paciente,
analgesia controlada pela equipe de
enfermagem, analgesia oral além de
estratégias não farmacológicas (Walker et
al., 2021; Hernigou et al., 2020).
A avaliação da
dor utilizando instrumentos unidimensionais
como a escala numérica de dor, e mesmo
aqueles multidimensionais, deve ser
utilizada regularmente durante todo o
período, sendo essencial o encorajamento do
relato de dor. Diferenciar a dor relacionada
à ferida operatória daquela causada pela
doença falciforme é importante para a
adequada abordagem do problema tendo em
vista que as crises de dor aguda são comuns
e de difícil controle em pacientes com a
doença falciforme (Walker et al., 2021). O
manejo da dor por analgesia controlada pelo
paciente é um método utilizado para
administrar medicamentos por via endovenosa,
peridural ou subcutânea. É considerado um
método seguro e eficaz, realizando infusões
intermitentes ou quando o paciente aciona o
dispositivo, e programadas de acordo com o
plano terapêutico. A dosagem de opioides
aumenta ou diminui de acordo com a
intensidade da dor, esse ajuste ocorre de
forma progressiva para evitar o risco de
depressão do sistema nervoso central
(Pereira, et al., 2022; Hernigou et al.,
2020). Para tal modalidade, é necessário uso
do equipamento “bomba de analgesia
controlada pelo paciente”. Também a
orientação adequada ao paciente e
familiares, incluindo informações e
esclarecimentos sobre o controle da dor,
causa da dor e instruções do uso da bomba. A
utilização do medicamento na bomba deve se
adequar com o caso clínico do paciente e o
plano terapêutico proposto, porém, o
medicamento mais utilizado é a morfina
devido a sua baixa lipossolubilidade. Para a
via peridural utiliza-se, frequentemente,
ropivacaína 0,2% associada à fentanil
(Pereira, et al., 2022, Duarte et al.,
2009). O propósito de utilizar a bomba de
analgesia controlada pelo paciente é
infundir opioides conforme a intensidade da
dor percebida pelo paciente, proporcionando
melhora ou cessando a dor em repouso e, no
máximo, permitindo que a dor seja
classificada como de leve intensidade quando
o paciente se apresenta em movimento (Duarte
et al., 2009).
Os indivíduos
com anemia falciforme que forem submetidos a
procedimento cirúrgicos devem estar
familiarizados com as técnicas de analgesia
e participar de forma ativa do plano de
controle da dor. Esse plano deve ser
estruturado com a participação da equipe de
saúde especialista em dor, anestesista e o
paciente. Deve-se evitar realizar cirurgia
eletiva em pacientes que estejam em crise de
dor e a equipe que prestará cuidados ao
paciente deve ser notificada com
antecedência sobre esses sinais e sintomas.
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